Fora de moda
por Andrea Ormond
Esqueçam a Gramado das ruas pacatas, chocolates sórdidos e bochechas rosadas. A praça dos
muckers
e colonos; o lugar em que o Brasil é “europeu” e tão provinciano quanto
qualquer outro buraco. Apesar de instalado nas serras gaúchas,
Réquiem Para Laura Martin
(2012) procura um cosmo próprio. Vá lá, usa o frio de almanaque e
vende-o ao público tropical, acostumado ao cinema brasileiro de
temperaturas demoníacas. Nenhum sinal de chinelos, bermudas ou meninos
magros procurando água. Tudo em
Laura Martin quer ser gélido,
interiorizado, atmosférico. Desde o primeiro suspiro da trama. Desde a
primeira touca de feltro, o primeiro sobretudo, a primeira galocha.
Aquela névoa que estapeia as coníferas e invade as cenas.
Pecado dos pecados, os personagens ainda cometem a santa heresia de
não praguejarem contra a ordem econômica. Não recriminam a mais valia,
não vociferam a pachochada ambientalista, nem mesmo contra os vendedores
de subprodutos do cacau.
Réquiem Para Laura Martin é, portanto,
“alienado” e, por conta desse traste politicamente incorreto, passou em
branco nos cinemas. Teve também o destino de ser escrito, produzido e
dirigido fora da grande onda de tapinha nas costas e batedores
patrulhando a recepção ao filme. Independente que só, tentou algo
particular. E conseguiu.
Já em 1978, Walter Hugo Khouri tocou para o mesmo
set, dividindo-se entre Gramado e a vizinha Canela.
As Filhas do Fogo é um momento
à la Edgard Allan Poe
na
obra do diretor, que conseguiu o expressionismo – aspecto intrínseco a
todo Khouri –, adicionando agora o elemento do terror. Pensem nas
árvores engolindo os homens, em
As Filhas do Fogo: o
revertere ad locum tuum. Fim de linha, fim de papo, a vida e o eterno.
Coincidência ou não, Paulo Duarte (roteirista e co-diretor) dedica
Laura Martin a
Walter Hugo Khouri. Falta, porém, o sobrenatural de
As Filhas do Fogo.
Encontramos, isto sim, uma espécie de Marcelo – o personagem-chave,
presente em outros filmes do paulistano. O Maestro (Anselmo
Vasconcellos) é em
Laura Martin uma criatura sem nome, que se
impõe pelo fato tão-só de ser “O” maestro. Um cinquentão subjugado, que
cai de quatro, aos pés da manceba Laura Martin (Ana Paula Serpa).
Pianista, musa inspiradora, dominatrix e afins. O que em Khouri era
fálico a toda prova, em
Réquiem Para Laura Martin é uma promessa de masoquismo, que, no extremo, leva à boa e velha perversão.
As Filhas do Fogo (1978), Walter Hugo Khouri
Há sexo adulto, há
cat fight entre a esposa histérica (Raquel,
Cláudia Alencar) e a donzela Martin. Isto porque Laura estava
entrevada, babando e alternando consciência com estados de letargia que
lembram os melhores documentários do Discovery Channel. A doença de
Laura trai algumas deficiências do roteiro – às vezes boquicheio e
simplório na caracterização do Maestro. É preciso que Laura esteja fraca
e se anule. Apenas assim, Raquel sai da toca e leva na bandeja algumas
das melhores cenas do filme. Nos planos longos, os atores se esbaldam. O
Maestro masturba-se na cama, ao lado de Raquel, pouco antes de dormir. A
mulher lê um livro, Maestro pede-lhe um lenço para secar as gotas de
Onã. A cena é especialíssima, uma das mais fortes realizadas no cinema
brasileiro contemporâneo. As imagens demonstram a solidão e a patologia
do casal. É um falso gozo, no meio do festim de amor que nos é empurrado
goela abaixo, em redes sociais e slogans fuleiros.
Mais adiante, Raquel pinta Laura como uma boneca, reeditando os
piores dramas da competição feminina e culminando em um orgasmo. Lembra
uma maternagem do mal: o seio de leite empedrado, a ferida narcísica que
nunca fecha. Como se estivessem em
Emanuelle, o Maestro então
oferece a esposa a um aspirante bocó, após ganhar uma partida de tênis.
Os cavalos, ah!, os cavalos, o mito equino dos anos 1970 está de volta.
Mas ao longe, apenas para compor o quadro; as partes íntimas dos animais
estão a salvo. No meio tempo, a petulância do Maestro cresce a todo
vapor. Pede o impossível à mulher: cuide de Laura, eu preciso. Os galhos
das árvores de
As Filhas do Fogo poderiam entrar na casa nessa hora. Mas, não. O terror aparece depois, de maneira inusitada: um
exploitation de Lucio Fulci, com sangue e explicação lógica, partilhada entre o Maestro e o espectador.
“Sou uma mulher madura, você é um garotinho de treze anos de idade”,
diz Laura. “Só queria que você me amasse”, choraminga Raquel. Alencar
acerta o ritmo, Serpa não demonstra a contento o tal furacão de Martin,
Vasconcellos baila sem fim, grande, na rara oportunidade de
protagonista. Totalmente paranóico e engolido pelo trisal, o Maestro
quase não coloca o nariz para fora da choupana, coberta de grama e
lençóis encharcados. Quando consegue, surgem os dois interlocutores
homens: um jornalista e um médico (Carlo Mossy, em bissexta atuação fora
das comédias). Para compor o interno/externo, Paulo Duarte e Luiz
Rangel (o outro co-diretor) jogam Maestro em ambientes grandiosos, como
carros de luxo, e supostamente grandiosos, como no discurso diante de
gatos pingados. Duarte e Rangel acertam em determinados diálogos. O
Maestro blasfema contra Deus, dentro de uma igreja. Oferece o sexo da
esposa, cheio de uma libido que garotos de vinte precisam hoje de
comprimidos azuis para saber que existe.
Réquiem Para Laura Martin é, de certa forma, um filme antigo, que choca as platéias e vira motivo de riso. Sempre penso que
Saló acabaria visto como comédia, especial de fim de ano da antiga MTV.
Lembro que o último longa-metragem de Alberto Salvá,
Na Carne e Na Alma
(2011), padeceu de um bloqueio barra pesada até finalmente chegar à
luz, quando então o diretor já era cinzas, morto e cremado para todo o
sempre. Na história, um garoto apaixona-se por uma garota, vivem as
tonterias e as desgraças de um amor que os leva ao ridículo.
Excrementos, modess, câmera mostrando o que devia e o que não devia.
Mostra, sobretudo, o envolvimento entre homem e mulher. Cabe aos
experimentados dizer se é factível ou não: crianças adestradas não
entendem. Espera-se que, dentre as mazelas no estatuto sociologizante
dos nossos dias,
Réquiem Para Laura Martin encontre um caminho,
alheio aos confrontos politicóides, com alguns deslizes, mas de uma
sinceridade de princípios que convém ao cinema brasileiro entender e
dela se aproximar. Tivessem um grupo de entusiastas, Luiz Rangel e Paulo
Duarte seriam tachados de gênios. Sendo como são, apenas artistas,
ficam à beira da estrada, incompreendidos.
Link Oficial do Site da Revista Cinética